sábado, outubro 22, 2011

O dia do juízo final


O homem é arrastado, ferido, decadente e sujo. Implora por sua vida. Apela para um instinto de devoção que não existe mais. O grupo é impiedoso e a tortura parece pouca perto dos anos de violência com que ele comandara o país. Muamar Kadafi é empurrado, arrastado, pisoteado, colocado sobre o capô de um carro; é puxado novamente, visivelmente perturbado, chocado e finalmente, amedrontado. Sabia que era o fim, assim como sabem todos os ditadores que, acovardados, fogem ou se matam.


Somente os presentes sabem dizer o que realmente aconteceu naquele fim de manhã, em Sirte, na Líbia, quando o ditador foi assassinado. Baseado nos vídeos publicados na internet, podemos apenas ter uma noção fragmentada momentos finais. Oficialmente, ele foi atingido durante um tiroteio. Mas todos sabemos que esta versão não tem nada de verdadeiro. Está tudo na internet! Kadafi foi morto com um tiro à queima roupa, na cabeça, e pronto. Julgado, sentenciado e executado na rua, tão barbaramente quanto foram os seus 40 anos de poder.

Talvez, por eu não ser líbia ou não ter enterrado amigos e parentes vítimas de um ditador; talvez, por eu nunca ter vivido uma ditadura (por favor, não digam que tivemos ditadura no Brasil!!!) ou talvez porque as cenas de horror me assustam apenas quando são reais (não sei bem o motivo), eu tenha ficado incomodada ao ver as imagens de Kadafi sem suas vestes excêntricas ou seu ar arrogante, reduzido à roupas ensanguentadas e dorso quase nu.

Incomodou-me pensar que este é o início do futuro de um país. Um futuro que já foi traçado quando os países”ricos” se aliaram aos rebeldes e quando formou-se o Conselho Nacional de Transição. A bala que matou Kadafi foi apenas um projétil. A verdadeira mão que segurou a arma não importa, mais. A sentença daquele país foi definida muito tempo antes da Primavera Árabe.

Não só o futuro da Líbia, mas de todos os países onde o “povo” (certeza que é o povo?) tem se levantado contra os poderes autoritários do Oriente Médio, já está traçado. Infelizmente, creio que seja um futuro ainda sob outras ditaduras.

Entristeceu-me saber que o fim de Kadafi mostrou às crianças e aos jovens do mundo árabe como se faz justiça. Por outro lado, vale à pena esperar pela justiça?

Nefrologista Pedro Torrecilas,
acusado de matar José Faria Carneiro com um golpe de bisturi,
momentos antes da condenação (Foto Divulgação)

No mesmo dia em que Kadafi recebia a sentença, no Brasil, um outro julgamento entrava no terceiro dia e só terminou nos primeiros momentos do quarto dia, com uma condenção de 17 anos de prisão. Os réus eram três médicos acusados de matar quatro pacientes para retirar-lhes os órgãos. Na verdade, segundo as denúncias, os pacientes estavam vivos enquanto os médicos forjavam provas de que estariam mortos somente para oferecer seus órgãos no mercado negro. Algumas vezes nem se preocupavam em forjar nada. Uma enfermeira contou, em juízo, que um dos pacientes se debatia na mesa de cirurgia enquanto seus rins eram retirados. O paciente só morreu quando o médico enfiou o bisturi e o deixou sangrar, dizendo à enfermeira “é assim que se faz”.

Matar uma pessoa, quatro ou milhares. Tem diferença? Requinte de crueldade dentro de um hospital ou nas ruas, tem diferença? O meu filho, o seu ou o de um líbio, tem diferença?

As famílias das vítimas dos médicos esperaram quase 30 anos para ver a condenação dos “doutores” acusados. Trinta anos! Provavelmente alguns parentes morreram enquanto os médicos - mesmo respondendo o processo - exerciam suas profissões, viajavam com suas famílias, envelheciam ao lado dos parentes e amigos. Um futuro que não foi permitido às quatro pessoas assassinadas no hospital de Taubaté. E, mesmo com a condenação, as famílias não verão os médicos atrás das grades. Todos poderão recorrer da sentença em liberdade! Quantos anos mais isso vai levar?

Ao menos Kadafi teve a sentença em um curto prazo. Julgamento feito, sentença proferida e executada. Simples assim, o que me leva à pergunta do dia (ou duas): os meios justificam o fim? Kadafi seria sentenciado à morte do mesmo jeito, então, qual o sentido de esperar pelo julgamento?

Talvez, se as imagens de Kadafi ferido, vulnerável e depois morto, não tivessem girado o mundo; talvez se eu não as tivesse visto não me daria conta da violência explícita e, sabendo apenas que ele havia sido assassinado, teria pensado “bom, era de se esperar”. Mas não foi assim. O fim de Kadafi me faz pensar que aquele país continuará semeando a violência e que os jovens continuarão achando que o sangue é a melhor maneira de se lavar a alma.

Talvez, se os médicos tivessem sido condenados e saído algemados direto para uma penitenciária, eu teria me importado menos com o recurso e a encenação toda de desmaio da parte de um dos “doutores”.

Eu apenas esperava algo mais do juízo final. Tanto de um lado, quanto do outro. Mas ambos os países não vão mudar.

Um comentário:

Anônimo disse...

É, não vão mesmo, lutavam por um patrão, Itália e, agora lutam por outro, EUA. A Líbia nem ao menos sabe o que é lutar por sí, nem os fatos apontam que agora vai saber. Aqui a mesma coisa, só que estranhamente lutamos por e contra nós mesmos(raras exceções). Somos ainda mais bizarros.
Também nada de novo aconteceu que iluminasse um novo fim por aqui. Taubaté é terra de médico assassino e vereador príncipe.

Michel R.